19 de jun. de 2011

Que Coisa

A palavra "coisa" é um bombril do idioma. Tem mil e uma utilidades. É aquele tipo de termo-muleta ao qual a gente recorre

sempre que nos faltam palavras para exprimir uma idéia. Coisas do
português.

A natureza das coisas: gramaticalmente, "coisa" pode ser substantivo,
adjetivo, advérbio. Também pode ser verbo: o Houaiss registra a
forma "coisificar". E no Nordeste há "coisar": "Ô, seu coisinha,
você já coisou aquela coisa que eu mandei você coisar?".

Coisar, em Portugal, equivale ao ato sexual, lembra Josué Machado.
Já as "coisas" nordestinas são sinônimas dos órgãos genitais,
registra o Aurélio. Na Paraíba e em Pernambuco, "coisa" também é cigarro de
maconha. Em Olinda, o bloco carnavalesco Segura a Coisa tem um baseado
como símbolo em seu estandarte. Alceu Valença  canta: "Segura a
coisa com muito cuidado / Que eu chego já." E, como em Olinda sempre
há bloco mirim equivalente ao de gente grande, há também o Segura a
Coisinha.

Na literatura, a "coisa" é coisa antiga. Antiga, mas modernista:
Oswald de Andrade escreveu a crônica O Coisa em 1943. A Coisa é
título de romance de Stephen King. Simone de Beauvoir escreveu A
Força das Coisas, e Michel Foucault, As Palavras e as Coisas.

Em Minas Gerais, todas as coisas são chamadas de trem. Menos o trem,
que lá é chamado de "a coisa". A mãe está com a filha na
estação, o trem se aproxima e ela diz: "Minha filha, pega os trem
que lá vem a coisa!".

Devido lugar

Coisa não tem sexo: pode ser masculino ou feminino. Coisa-ruim é o
capeta. Coisa boa é a Juliana Paes. Nunca vi coisa assim! Coisa de
cinema! A Coisa virou nome de filme de Hollywood, que tinha o seu
Coisa no recente Quarteto Fantástico. Extraído dos quadrinhos, na TV
o personagem ganhou também desenho animado, nos anos 70. E no
programa Casseta e Planeta, Urgente!, Marcelo Madureira faz o
personagem "Coisinha de Jesus".

Coisa também não tem tamanho. Na boca dos exagerados, "coisa
nenhuma" vira "coisíssima". Mas a "coisa" tem história na MPB.

No II Festival da Música Popular Brasileira, em 1966, estava na
letra das duas vencedoras: Disparada, de Geraldo Vandré ("Prepare seu
coração / Pras coisas que eu vou contar"), e A Banda, de Chico
Buarque ("Pra  ver a banda passar / Cantando coisas de amor"), que
acabou de ser relançada num dos CDs triplos do compositor, que a Som
Livre remasterizou. Naquele ano do festival, no entanto, a coisa tava
preta (ou melhor, verde-oliva). E a turma da Jovem Guarda não tava
nem aí com as coisas: "Coisa linda / Coisa que eu adoro".

Cheio das coisas

As mesmas coisas, Coisa bonita, Coisas do coração, Coisas que não
se esquece, Diga-me coisas bonitas, Tem coisas que a gente não tira
do coração. Para Maria Bethânia, o diminutivo de coisa é uma questão
de quantidade (afinal, "são tantas coisinhas miúdas"). Já para Beth Carvalho,
é de carinho eintensidade ("ô coisinha tão bonitinha do pai").
Gal. "Esse papo já tá qualquer coisa... Já qualquer coisa doida dentro mexe."
Essa coisa doida é uma citação da música Qualquer Coisa, de Caetano,
que canta também: "Alguma coisa está fora da ordem."

Por essas e por outras, é preciso colocar cada coisa no devido
lugar. Uma coisa de cada vez, é claro, pois uma coisa é uma coisa;
outra coisa é outra coisa. E tal coisa, e coisa e tal. O cheio de
coisas é o indivíduo chato, pleno de não-me-toques. O cheio das
coisas, por sua vez, é o sujeito estribado. Gente fina é outra
coisa. Para o pobre, a coisa está sempre feia: o salário-mínimo
não dá pra coisa nenhuma.

A coisa pública não funciona no Brasil. Desde os tempos de Cabral.
Político quando está na oposição é uma coisa, mas, quando assume
o poder, a coisa muda de figura. Quando se elege, o eleitor pensa:
"Agora a coisa vai." Coisa nenhuma! A coisa fica na mesma. Uma coisa
é falar; outra é fazer. Coisa feia! O eleitor já está cheio dessas
coisas!

Coisa à  toa

Se você aceita qualquer coisa, logo se torna um coisa qualquer, um
coisa-à-toa. Numa crítica feroz a esse estado de coisas, no poema
Eu, Etiqueta, Drummond radicaliza: "Meu nome novo é coisa. Eu sou a
coisa, coisamente." E, no verso do poeta, "coisa" vira "cousa".

Se as pessoas foram feitas para ser amadas e as coisas, para ser
usadas, por que então nós amamos tanto as coisas e usamos tanto as
pessoas? Bote uma coisa na cabeça: as melhores coisas da vida não
são coisas. Há coisas que o dinheiro não compra: paz, saúde,
alegria e outras cositas más.

Mas, "deixemos de coisa, cuidemos da vida, senão chega a morte ou
coisa parecida", cantarola Fagner em Canteiros, baseado no poema
Marcha, de Cecília Meireles, uma coisa linda. Por isso, faça a coisa
certa e não esqueça o grande mandamento: "amarás a Deus sobre todas
as coisas".           _ENTENDEU O ESPíRITO DA COISA?_

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